A série Adolescência e a governança da internet

A série “Adolescência”, maior sucesso da Netflix em 2025, está pautando o debate público. Não é para menos, ela materializa de forma nua e crua um desconforto palpável: o descontrole na nossa relação com a tecnologia, com foco na educação dos jovens, e seus impactos.   

A produção trata das terríveis consequências de meninos adolescentes inundados por conteúdos misóginos e violentos; de meninas imersas em um ambiente digital que coloca em xeque sua autoestima e autoconfiança; e de pais e mães, que não conseguem (sem julgar o mérito) acompanhar essa revolução na medida do necessário. Levanta, a partir de um assassinato, discussões sobre o alcance, e a falta de regulamentação, da internet e das redes sociais e escancara a profundidade da desconexão e da falta de terreno comum entre adultos e jovens de diferentes gerações.  

Uma mudança difícil de acompanhar

A ideia de uma aldeia global interconectada com a circulação livre e irrestrita de informações originou a internet. A flexibilidade, a experimentação, a informalidade, a cooperação, a autorregulamentação, a tomada de decisões colegiadas com pouca ou nenhuma restrição estatal foram as bases sobre as quais ela foi construída. O contexto de sua criação, assim como as características da comunidade que a desenvolveu – tecnologistas baseados no Vale do Silício, com pouca diversidade e cultura e ideologia próprias -, foram determinantes da sua ética. 

Como efeito rebote, vivenciamos um atropelamento da legislação dos países, incapazes de acompanhar as transformações. A governança é insuficiente para mitigar os riscos e os impactos negativos da conexão praticamente universal à rede. No lugar da utópica aldeia global, democrática e livre, acumulam-se problemas decorrentes de uma legislação defasada e de um ambiente de negócios dominado por poucas empresas, com consequências sérias no mundo real. Em outras palavras, a internet é uma espécie de terra sem lei, onde quem compreende e domina seu funcionamento, faz o que quer. Um experimento social em larguíssima escala, ainda mais se considerarmos que, em 2024, 66,2% da população mundial e 86,6% da brasileira tinham acesso à internet, sendo as redes sociais utilizadas, respectivamente, por 62,3% e por 66,3% das pessoas. 

Fórmula de sucesso ou veneno?

Boa parte do modelo de negócio que levou ao “sucesso” das conhecidas Big Techs, é baseado na captura dos dados dos usuários. Nas redes sociais, os usuários trabalham de graça, a economia da atenção, e alimentam os algoritmos que os mantêm vidrados em suas telas.  

Os mesmos algoritmos, que têm como único objetivo o aumento do tráfego, impulsionam a formação de bolhas informacionais que influenciam a polarização social e a radicalização. Situação agravada pela livre circulação de informações falsas ou descontextualizadas, com impacto para a saúde das democracias e das pessoas, que, em muitas vezes, se vêm presas nessas bolhas e podem se envolver em situações extremas como o assassinato da série “Adolescência”.  

As Big Techs tornaram-se oligopólios opacos, acima do bem e do mal. Em certa medida, acumulam mais poder e influência do que governos submetendo milhões de usuários aos seus termos de uso, que funcionam como uma lei própria. Também penetraram em todas as esferas da nossa vida, inclusive em governos, gerando uma enorme dependência e fazendo uma pressão pesada para que tudo continue assim. 

A culpa é de quem?

A que legislação respondem as Big Techs? A resposta é tão simples quanto assustadora: a nenhuma.  

Apesar de esforços na criação de regulamentações em diversos países, inclusive no Brasil, eles não acompanham a velocidade e com os recursos necessários. Situação que ainda tende a se agravar com a ampliação da adoção da inteligência artificial generativa. 

Estamos sendo atropelados pela tecnologia como se não houvesse agência humana no curso dos acontecimentos. Uma discussão ampla e transparente é urgente. Os caminhos para conduzi-la parecem cada vez mais estreitos.  

E você? O que você pensa sobre a governança e a regulamentação da internet? 

Isabela Scarioli Texto: Isabela Scarioli

Referências que me ajudam a pensar sobre o tema: 

Referências: BUCCI, Eugênio. A superindústria do imaginário: Como o capital transformou o olhar em trabalho e se apropriou de tudo que é visível. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2021. https://a.co/d/57usGuS 

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. A era da informação: economia, sociedade e cultura. tradução: Roneide Venancio Majer. 24. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022. v. 1. https://a.co/d/57usGuS 

CESARINO, Letícia. O mundo ao avesso: Verdade e política na era digital. São Paulo, SP: Ubu Editora, 2022. https://a.co/d/52sYoXp 

DIGITAL 2024: GLOBAL OVERVIEW REPORT. [S. l.], 2024. Disponível em: https://datareportal.com/reports/digital-2024-global-overview-report. Acesso em: 4 jul.  

  1. EDELMAN TRUST INSTITUTE. 2024 Edelman Trust Barometer. [S. l.: s. n.], 2024. Disponível em: https://www.edelman.com/sites/g/files/aatuss191/files/2024- 02/2024%20Edelman%20Trust%20Barometer%20Global%20Report_FINAL.pdf. F

ERRARI, Marcos. O Brasil deveria criar uma taxa de rede de internet para as big techs? SIM. Folha de S.Paulo, São Paulo, 9 fev. 2024. Opinião. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2024/02/o-brasil-deveria-criar-uma-taxa-de- rede-de-internet-para-as-big-techs-sim.shtml. Acesso em: 6 jul. 2024.  

FERRARI, Hamilton. Valor de mercado das big techs subiu US$ 489 bilhões em janeiro. [S. l.], 2024. Disponível em: https://www.poder360.com.br/economia/valor-de- mercado-das-big-techs-sobe-us-489-bilhoes-em-2024/. Acesso em: 2 jul. 2024.  

HAIDT, Jonathan. The anxious generation: how the great rewiring of childhood is causing an epidemic of mental illness. New York: Penguin Press, 2024.  

HOXTELL, Wade; NONHOFF, David. Internet Governance: Past, Present and Future. [S. l.]: Global Public Policy Institute, [s. d.]. LEINER, Barry M. et al. A Brief History of the Internet. In: INTERNET SOCIETY. 1997. Disponível em: https://www.internetsociety.org/internet/history-internet/brief-history- internet/. Acesso em: 4 jul. 2024.  

MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascenção dos dados e a morte da política. tradução: Claudio Marcondes. São Paulo: Ubu, 2018. https://a.co/d/3O4VVfN 

NET MUNDIAL. 1. Internet Governance Principles | NETmundial Comments. [S. l.], [s. d.]. Disponível em: https://document.netmundial.br/1-internet-governance-principles/. Acesso em: 4 jul. 2024. 

ORTIZ-OSPINA, Esteban; ROSER, Max. The rise of social media. Our World in Data, [s. l.], 2024. Disponível em: https://ourworldindata.org/rise-of-social-media. Acesso em: 4 jul. 2024. 

RADU, Roxana. Revisiting the Origins: The Internet and its Early Governance. In: RADU, Roxana (org.). Negotiating Internet Governance. [S. l.]: Oxford University Press, 2019. p. 0. Disponível em: https://doi.org/10.1093/oso/9780198833079.003.0003. Acesso em: 5 jul. 2024.  

ROSER, Max. Technology over the long run: zoom out to see how dramatically the world can change within a lifetime. Our World in Data, [s. l.], 2024. Disponível em: https://ourworldindata.org/technology-long-run. Acesso em: 4 jul. 2024.  

ROSER, Max; RITCHIE, Hannah; MATHIEU, Edouard. Technological Change. Our World in Data, [s. l.], 2024. Disponível em: https://ourworldindata.org/technological-change. Acesso em: 4 jul. 2024.  

SRNICEK, Nick; DE SUTTER, Laurent. Platform capitalism. Cambridge, UK ; Malden, MA: Polity, 2017. (Theory redux). https://a.co/d/5tcD97T 

VIANA, Diego. O que é a policrise, o termo que vem sendo usado para os desafios da humanidade. Valor Econômico, [s. l.], 14 abr. 2023. Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2023/04/14/o-que-e-a-policrise-o-termo-que- vem-sendo-usado-para-os-desafios-da-humanidade.ghtml. Acesso em: 6 jul. 2024.  

WEF. The Global Risks Report 2024. [S. l.]: World Economic Forum, 2024. WORLD BANK. “Share of the population using the Internet – International Telecommunication Union” [dataset]. World Bank, “World Bank World Development Indicators” [original data]. [S. l.], 2023. Disponível em: https://ourworldindata.org/grapher/share-of-individuals-using-the-internet. Acesso em: 4 jul. 2024. 

Texto por