Meus pais são um contador e uma dona de casa que sempre acharam o estudo a coisa mais fina do mundo, como diria Adélia Prado. Por isso, me matricularam em uma escola particular muito além das nossas posses. Meu pai dizia que a escola não era tão cara pelo que oferecia, mas principalmente para separar os filhos dos ricos dos filhos dos pobres. Foi nessa escola que terminei o fundamental I e fiz o ensino médio; naqueles sete anos, me lembro de turmas onde, além de mim, havia no máximo mais um ou dois alunos negros. Certamente éramos menos de 5% da classe.
Eu tinha consciência do sacrifício que me manter naquela escola representava para toda a família: meus pais e três irmãos, bem mais novos. E como também sempre tive muito juízo, quis valorizar o investimento: durante aqueles sete anos, tirei as melhores notas da turma e do colégio inteiro. Até hoje tenho guardadas as cartas que recebia do diretor, perto do Natal, reconhecendo meu desempenho escolar durante o ano. Como consequência “natural” dessa dedicação, conquistei uma vaga na universidade federal – pública, gratuita e de qualidade – no curso que eu havia escolhido. E foi nessa mesma instituição onde me graduei que, anos depois, fiz o mestrado, quando o sistema de cotas para negros e outros grupos ainda não existia.
Essa trajetória me fez rejeitar a ideia de cotas em um primeiro momento. Como assim, eu que sempre ralei a vida toda para me manter entre os primeiros da turma, precisar de “favorecimento” de cotas para negros para conquistar um lugar em instituições de ensino, mercado de trabalho ou seja lá onde for?
Acontece que o sistema de cotas, que depende da combinação de uma série de fatores socioeconômicos, não é sobre mim, não se trata da minha história e não é favorecimento, mas justiça e reparação, resultado da luta dos movimentos negros. Vivemos em uma sociedade que nos condena a condições muito desiguais e desfavoráveis na trajetória de busca por educação e uma vida melhor, por nossas origens sociais, raça, cor da pele, gênero, habilidades físicas e qualquer outra condição que fuja ao “script” do grupo hegemônico. E é para dar mais chance aos grupos minorizados (e não necessariamente minoritários) que as ações afirmativas e o sistema de cotas existem e são tão essenciais, permitindo que sejamos reconhecidos em nossas diferenças e tratados com equidade no reconhecimento de direitos.
Tenho encontrado lideranças e formadores de opinião (inclusive de grupos minorizados) e que fariam diferença na sociedade se advogassem a favor de políticas afirmativas. Para alguns, no entanto, a ficha parece não ter caído ainda. É uma pena. Limitam-se a defender que as cotas devem ser as da competência. Desculpa, gente boa, mas o sistema de cotas não é sobre você e nem sobre a sua história.
Dulcemar da Costa
Sócia