O Enem e o grito das invisíveis

O Enem 2023 não acabou, mas já cumpriu seu papel ao colocar pelo menos uma geração pensando sobre cuidado não remunerado e sobrecarga das mulheres, invisíveis e exaustas.

De acordo com o relatório “Tempo de cuidar”, da ONG Oxfam, as mulheres fazem mais de 75% de todo o trabalho de cuidado não remunerado do mundo. Via de regra, a situação é ainda mais grave para mulheres pretas ou em situação de vulnerabilidade social, que dedicam horas e mais horas por dia aos serviços domésticos, cuidados com filhos, pais, pets, com os próprios maridos. Isso em situações normais de temperatura e pressão. Quando alguma variável sai do script, a sobrecarga é ainda maior.

E não se trata de uma situação recente ou isolada, que atinge uma ou duas mulheres. Ouso dizer que, além de mim, todas as mulheres com quem convivo, especialmente as mães, enfrentam algum (ou muitos!) desdobramentos dessa sobrecarga. Assumem o famoso terceiro ou quarto turno; se desdobram entre afazeres domésticos, escolares, de cuidado e do seu próprio trabalho; praticam o perigoso mantra trabalhe enquanto eles dormem e por aí vai.

Muitas de nós, quando questionadas, vez ou outra acabamos repetindo narrativas cuidadosamente construídas e disseminadas pelo patriarcado, como “Ah, mas meu marido é muito distraído”, “ele não tem paciência para ajudar nas tarefas escolares”, “ele não sabe limpar a casa tão bem”, “ele não tem tempo pra levar ao médico e se levar não sabe descrever direito o que a criança tem” e, de novo, por aí vai.

Levante a mão quem nunca disse – com convicção ou com raiva – ou ouviu uma colega dizer uma dessas frases. Um discurso alinhado e linear, bem ensaiadinho e repetido há gerações por mulheres de diferentes raças, credo, classes sociais. Curioso, né? Se fosse um case de comunicação, com certeza seria premiado pela excelente mensagem-chave multiplicada pelos stakeholders prioritários.

Mas basta olhar com um pouquinho mais de atenção à narrativa para perceber que, como dizemos aqui em Minas, tem caroço nesse angu. E nesse caso, meu amigo, o que a experiência me diz é que, mais cedo ou mais tarde, a crise se apresenta. Batata!

Apesar de terem se intensificado nos últimos anos, as reflexões sobre a sobrecarga e invisibilidade não são de hoje. Quem primeiro escreveu sobre este estado de invisibilidade das mulheres para o mundo do progresso foi a economista dinamarquesa Ester Boserup, em 1970. No livro “Woman’s Role in Economic Development” (O papel da mulher no desenvolvimento econômico”, em tradução literal). Na obra, ela questiona o pensamento estagnado que considera “natural” a divisão de tarefas a partir da perspectiva de gênero. (Estudantes: seria ou não seria um bom repertório para a redação do Enem?).

Mês passado, essa mesma perspectiva foi questionada pelas mulheres islandesas, que cruzaram os braços por 24 horas e chamaram a atenção do mundo todo para a falta de equidade salarial e para a sobrecarga das mulheres nas tarefas de cuidado.

Cheguei a comentar com uma amiga que se fizéssemos o mesmo no Brasil, as crianças e idosos morreriam à míngua. Pois bem, não paramos em greve geral, mas paramos hoje para pensar em como lidar com os desafios para enfrentar a invisibilidade do trabalho de cuidado das mulheres no Brasil. Quase 4 milhões de pessoas se dedicaram a escrever sobre o tema no Enem. E levaram suas reflexões para suas famílias, amigos, professores e vizinhos. Se isso não é o potencial transformador da educação, não sei o que mais pode ser.

Claro que sabemos que uma redação não resolve uma questão tão complexa e arraigada como essa. Tampouco muda o mundo num piscar de olhos. Mas dá uma esperança danada de ver essa reflexão sair do papel e provocar ações individuais, coletivas, políticas e sociais, essas sim transformadoras e capazes de mudar o mundo.

 

 

Lilian Ribas
Sócia

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